O Palco Giratório 2013 inicia com
o espetáculo “O Filho Eterno”, da Cia Atores de Laura (RJ). O monólogo
escancara a alma de um pai que se debate para aceitar a existência do filho com
Síndrome de Down. A surpresa, a revolta, a culpa e a vergonha; tudo revelado
sem o menor pudor. O choque em ouvir o ponto de vista mais cruel é atenuado
pelo discurso em terceira pessoa, levado com muita competência pelo ator
Charles Fricks, que narra ao mesmo tempo em que executa a ação, o que revela o
distanciamento do personagem Pai em relação ao seu filho inesperado e
indesejado: Felipe, o único nome revelado na história. Esse efeito de
distanciamento, calcado nos estudos de Bertolt Brecht, também sugere que o
ator-narrador está apontando para a história que narra, revelando seus
pormenores, segredando ou acusando, mas acima de tudo, expondo o personagem
para a plateia. O espetáculo tem esse tom confessional e transforma os
espectadores em cúmplices, e executando nosso papel, engolimos em seco as
ofensas na esperança de que uma hora ou outra esse Pai vai entender. Variamos
entre a piedade e a identificação. Ouvimos a versão da ciência sobre os portadores da
Síndrome de Down e junto com esse diagnóstico, todo tabu da inteligência
perfeita e apropriada. Como o espetáculo se passa nos anos de 1980, constatamos
o quanto nossa sociedade pouco sabia sobre pessoas diferentes e o quanto tantas
famílias sofreram com isso, fato que empurra a montagem para o
teatro-documentário, ou biodrama. Outra característica de biodrama é o fato de
que a história se baseia no livro autobiográfico de Cristóvão Tezza, apesar do
autor preferir que sua obra seja recebida como romance. Biodrama ou não, o
espetáculo assim como o livro, ganha em por se concentrar no problema e não na
solução. Aquele Pai que estava na nossa frente assumia para si toda a
ignorância do mundo, pois era ele quem se debatia buscando a aceitação.
Bastante interessante o jogo de espelhos da realidade de Pai e filho; desde o
início o Pai se revela um “sustentado pela mulher, em todos os sentidos”,
desempregado, sem maiores competências. Como escritor fracassado, se defendia do
que não podia suportar com um comportamento piadista e falsamente alegre. Ele
mesmo se mostra como um desajustado socialmente, e ri disso muito facilmente. Semelhante a uma fita de Moebius, essas
características são as mesmas que o incomodarão no filho; sua preocupação será
com a incapacidade do filho de arrumar emprego, sua dependência, sua fraqueza
física, sua despreocupação, e sua alegria. O que o incomoda no filho é
justamente a semelhança com ele mesmo; é o reconhecimento de que Felipe é uma
nova versão de sua própria pessoa. A
montagem reforça uma visão científica carregada de preconceito, salientando que
“no final dos anos 80 ninguém sabia o que era Síndrome de Down; chamavam de
mongoloide”, cheia de impropérios que soavam como verdade para o Pai, que não
consegue oferecer uma segunda opinião. Fica a encargo do espectador deixar
minar a outra verdade sobre os portadores da Síndrome de Down, a outra verdade
sobre Felipe. Impassíveis, deixamos o Pai se debater, e como Felipe, recebemos
todo preconceito e intolerância que ele tem para nos atirar. A direção de
Daniel Herz é de uma simplicidade desconcertante, colocando no palco o Pai
“sozinho, como sempre esteve na vida” e uma cadeira, que representa a única
pessoa que realmente importava na vida deste Pai, ou seja, ele mesmo. No final
o palco recebe mais uma cadeira; éFelipe que é finalmente aceito. A iluminação é cirúrgica, pontuando
precisamente os efeitos do ato de se debater, mas não revela nada além da
confissão. Toda montagem se concentra nesta confissão estertorada, impedindo a
distração.
JULIANA CAPILÉ (Colaboração de Tatiana Horevicht)
CIA PESSOAL DE TEATRO
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