Dois
monólogos trabalharam a temática do boi nessa quarta e quinta-feiras no Palco
Giratório. Na quarta (15/05) conferimos o Boi,
da SerTão Teatro Infinito Cia. (GO), com direção de Hugo Rodas e atuação de
Guido Campos Correa, que contou a história de Zé Argemiro e sua paixão pelo boi
Dourado; um amor tão grande que deixa sua esposa Das Dores muito enciumada a
ponto dela resolver matar o animal para libertar seu marido do ‘feitiço’. A
solução final de Das Dores surte efeito contrário e acaba por transformar Zé
Argemiro num boi. O conto, trabalhado de forma narrativa e marcações poéticas é
permeado por enxertos carnavalescos que quebram com a narrativa numa mudança
brusca de apolíneo para dionisíaco, numa ação que o ator chamava de “momento
interativo do espetáculo”. Nesses momentos interativos o ator conversava com a
plateia sobre assuntos nada relacionados ao drama de Argemiro, numa atitude
“escrachada”, como ele mesmo classificou, em clara referência dionisíaca. Ao
longo da narrativa, vários momentos de virtuosismo, onde o ator dança e canta.
As máscaras de boi promovem um efeito enriquecedor, lembrando ora Minotauro,
ora a figura do diabo dos brincantes. A mistura desses elementos todos,
dionisíaco, apolíneo, narrativo, carnavalesco, regional e brincante, conferem um tom bagunçado, como a junção da poesia que
há no amor de um homem por um boi ao som da música do ABBA. Com essa mistura a
montagem enxerga uma “relação gay” entre
Argemiro e o boi Dourado, abordando não
pelo sentimento homoafetivo ou zooafetivo,
mas pela carnavalização referenciada pela música disco e o exibicionismo do
ator. O efeito não foi de mistura, e sim de colagem, pois uma linguagem não
conseguiu correspondência com a outra. É a eterna briga entre o apolíneo e o
dionisíaco.
Já
o outro monólogo da quinta-feira (16/05), dia de chuva e Bulixo, foi bem mais
coerente. O espetáculo O Miolo da
História, da Santa Ignorância Cia. De Artes (MA) conta o dilema de João
Miolo, um pedreiro que também é brincante de Bumba-Meu-Boi. João é miolo, ou
seja, responsável por mexer o corpo do Boi durante a brincadeira, e sonha em
ser cantante e por fim deixar de estar escondido pela pele do boi, podendo ser visto e reconhecido. Acontece que o
talento de João é ser miolo; é o que faz de melhor. Inconformado com a pouca
exposição, João se revolta e deixa a boiada, mas quando se machuca na
construção, precisa retomar sua relação com São João Batista e seus
correspondentes no sincretismo religioso. Novamente a figura do brincante
aparece no Palco Giratório, trazendo uma relação contemporânea na cena. Neste
espetáculo o corpo do ator Lauande Aires executa o tempo todo, passos do Boi; a
dança, o gestual, o ritmo. Lauande também é responsável pela direção e texto, o
que centraliza nele a narrativa da história. Em alguns momentos ficamos um
tanto perdidos na regionalização, mas o espetáculo consegue universalizar se
concentrando na vontade de João em ocupar uma posição de maior destaque na
brincadeira. A atuação intercala momentos narrativos com a dramatização dos
personagens, que escorrega um pouco na dosagem dramática, um tanto carregada. O
cenário abstrai um pouco mais utilizando objetos da vida de João, como os
instrumentos do trabalho na construção civil e sua identidade de brincante.
Bonito efeito quando o carrinho de mão se transforma no corpo do Boi e João sai
dançando com ele. Outro ponto alto é a imagem da bicicleta que João pedala
todos os dias para o trabalho, feita de peneiras como rodas, presas no alto de
uma escada de pintor.
A
importância de um circuito como o Palco Giratório é justamente fazer chegar a
diferentes públicos, espetáculos de diferentes registros e modalidades. Ver um
espetáculo de Goiás ou do Maranhão nos possibilita uma visão mais alargada do
panorama da produção cênica da Brasil e prova que nosso país possui diversidade
cultural e artística. Apesar de termos a sensação de que os espetáculos seguem
um fluxo semelhante, muito próximos da performatividade e das influências do
teatro contemporâneo, percebemos que cada espetáculo tem uma linguagem e uma
forma de corresponder a essas influências. Essa multiplicidade de gêneros e
abordagens temáticas são só a pontinha do iceberg que é a grandeza do teatro
brasileiro. Acompanhe os espetáculos do Palco Giratório e não perca essa chance
de conhecer um pouco mais do panorama das artes cênicas no Brasil.
Juliana Capilé e Tatiana Horevicht
CIA PESSOAL
DE TEATRO