Cidade dos Outros - Aldeia Xavante Wede'rã - Mato Grosso / Brasil (junho/2016). Foto: Protásio de Morais
Foi através dos olhos e olhares
atentos do publico xavante que redescobri o espetáculo que atuo desde 2010. Cidade dos Outros, uma produção da Cia.
Pessoal de Teatro (MT) é uma peça contemporânea que tem referencia em Beckett e
sua obra. Estão presentes a inapetência, a espera por um “maná divino”, os
devaneios da vida contemporânea urbana. O que tudo isso poderia dizer para uma
aldeia indígena? Sua hierarquia, seus ritos, seus tempos e as horas que não
passavam deram a apresentação que aconteceria, um lugar diferenciado.
O espetáculo foi realizado no warã,
espaço central da aldeia onde todos os dias os homens se reúnem. Foi neste
espaço que na primeira noite, fomos solenemente apresentados à comunidade, para
que soubessem quem somos, para que nos conhecessem. Minha sensação é que já
haviam nos aceitado desde nossa entrada ou muito antes disso. Que estávamos
próximos e distantes ao mesmo tempo, um misto de reconhecimento e
estranhamento.
O espaço do warâ é enorme, é o
centro da comunidade, tudo o que eu queria era ter um cenário maior, um
espetáculo maior para ocupar o espaço. Quando a montagem da máquina de cena
começou as crianças ficaram em volta, os homens ajudaram. Passaram a tarde
construindo tochas para que a iluminação do espetáculo fosse maior e que assim
pudesse ser registrado. Registro que foi realizado pela equipe de assessoria da
SEC – MT e do Ponto de Cultura Audiovisual Apowê. Cidade
dos Outros inicia antes do público entrar e só termina quando o último
espectador sai; não havia a mínima possibilidade de fazer isso lá. Na aldeia
não há espaço para a solidão, citando a amiga e jornalista Lidiane Barros que
presenciou na pele a vivência. Sabíamos que aquelas pessoas não iriam se
aproximar somente quando tudo estivesse pronto para recebê-las e se retirar
quando estivessem enfadados de esperar que os personagens parem de girar a
máquina de cena, como acontece usualmente.
Eles ficariam. Essa foi a nossa discussão de um dia e meio na
pré-produção da apresentação. A solução encontrada foi abrir toda a encenação,
começo, meio e fim expostos. Sem artifícios, segregações espaciais, regras ou
conceitos a seguir. O que tínhamos era o aqui e agora mais que verdadeiro, sem
regras pré-estabelecidas. O que tínhamos era a verdadeira troca entre cena e
espectador. Preparamos uma sinopse que contamos e que foi traduzida para que
todos pudessem acompanhar o espetáculo. Começamos. A cada frase do texto, a
cada silêncio, pausa, marcação, partitura realizada, pensávamos no que aquilo
realmente significava. O que significava o tema da espera para quem tem o tempo
todo a sua disposição, para aquele que não contabiliza sua vida em anos, dias e
horas? O que significava o tema da insanidade pelo consumismo para aquele que é
mais do que tem? O que importa o tema da
indiferença com o outro para quem se reconhece em comunidade, para aquele que
tem como parente o seu próximo desconhecido? Acabamos o espetáculo que não acaba
com um belo: e assim termina o teatro! Recebemos os aplausos, os apertos de
mãos e abraços de agradecimento reciproco. O que aconteceu depois foi mais um
aprendizado. Todos de mãos dadas, em volta da Urbitária, nossa máquina de cena, dançamos e cantamos com a nação
xavante. Uma forma de congraçamento e de troca generosa. Para encerrar a
celebração como disse Cacique Cipasse. Para nos irmanar e nos reconhecer
compartilhando um momento eterno e fugaz, eu completo.
Entre alegrias fomos nos trocar,
desmontar a máquina de cena, jantar e então conversar. Tudo o que queríamos
saber era se foi possível entender o português. Sim, claro que sim, somos nós
que não entendemos a língua indígena. Quanto ao espetáculo, muito engraçado e muito
bom para as crianças, porque são coisas que os adultos as alertam, para que
fora da aldeia não caiam no embuste do consumismo ou do trabalho escravizado
pelas horas do relógio. Um espetáculo para crianças! Que coisa mais feliz de se
saber, pois quando atuava para a comunidade atenta, era como eu me sentia, uma
criança.
A frase final incluída na
apresentação vaticinava o que ali se iniciou: um teatro terminou e outro começa
a nascer em mim.
https://youtu.be/GrMwIkqvBaE