A Cia. Mungunzá (SP) baixou em
Cuiabá, no sábado (04/05) com o premiado espetáculo Luís Antônio Gabriela, vencedor do Premio Shell de melhor direção,
uma das mais importantes premiações das artes cênicas do Brasil. Mesmo sendo
cansativo para alguns, os espectadores saíram tocados com a história de
Gabriela, nascida Luís Antônio, em uma família santista, interior de São Paulo
na década de 60. Viveu a infância e juventude entre o amor e o desprezo da
família, por ser homossexual. Adotado por seu pai verdadeiro e a esposa do pai,
foi o mais velho de seis irmãos entre eles Nelson Baskerville, diretor e
propositor do espetáculo que divide a dramaturgia com Verônica Gentilin. Idealizado no formato de teatro documental,
ou biodrama, o espetáculo não poupa em detalhes sórdidos da história de
Gabriela e sua família, escancarando sem pudor segredos como o aliciamento de Luís
Antônio contra os irmãos mais novos, as brigas em família, as traições, as
ignorâncias e o desprezo. Nelson, o diretor do espetáculo, foi aliciado pelo
irmão durante sua infância e na fase adulta se recusa a vê-lo. Luis Antônio resolve “viver sua vida”,
assumindo sua homossexualidade e recorrendo às drogas, bebida e silicones, realizando inúmeras cirurgias de mudança corporal
para conseguir enfrentar suas dificuldades e sua solidão. Seu estilo de vida
acaba levando-o à morte, sem ter a
chance de falar com seu pai antes de morrer e sem receber o perdão de seu irmão,
Nelson. A montagem trabalha com este material
potencialmente inflamável e não suaviza nem um pouco antes de apresentá-lo. Utilizando recursos áudio visuais, com câmeras
em cena que recortam a imagem dos atores, define uma perspectiva para encarar a
história, além de cenas gravadas que reforçam a veracidade dos fatos e
documentam os depoimentos. Numa opção pelo grotesco, a direção expõe o coração,
às vezes literalmente, rasgando a fragilidade dos personagens; tudo em uma atuação performativa, com atores ora representando a
si mesmos e sua opinião “pessoal”, ora representando um dos personagens da
trama. Esta opção, bem cara ao teatro contemporâneo, serviu de silicone e
cílios postiços para uma história geneticamente melodramática. Isto é
especialmente interessante: o espetáculo é um melodrama travestido de
performativo, tal como o personagem principal, que nasceu geneticamente homem,
mas se define mulher. Para conseguir não apagar os traços melodramáticos de sua
história, a direção se utiliza deste grotesco e de muito sarcasmo, brincando
com as alegorias do enredo. Três cenas foram particularmente chocantes: a
violenta surra do Pai em Luís Antônio, a masturbação explícita de Luís e o
estupro sofrido por Nelsinho, praticado por Luís. Muito violento, mas
necessário; fazia parte do material bombástico trabalhado pelo grupo e não
poderia deixar de ser diferente. Desejamos não ver essas cenas, da mesma forma
que desejamos que elas não tivessem acontecido; nem com esta família e nem com
ninguém. Mas aconteceu, e a Cia. Mungunzá conta como isso aconteceu, lembrando
que este pensamento fez parte de uma época “que para gostar de homem o sujeito
tinha que ser mulher”, registrando o preconceito e a intolerância que um
travesti ou transexual precisava passar, e que, infelizmente, ainda enfrenta
nos dias de hoje. A dramaturgia é uma costura de vários depoimentos dos
personagens reais, além de enxertos dos próprios atores, trabalhada durante
improvisos nos ensaios. O único ‘porém’ foi termos assistido o espetáculo em
palco italiano, mas sabemos que a escolha pela troca de espaço, que
inicialmente seria no Salão Social do SESC, em formato de arena e com o
espectador mais próximo, foi motivada pela consciência de possibilitar que mais
pessoas pudessem assistir, já que foi uma única apresentação. Assistir o espetáculo
frontalmente deixou a desejar, já que era uma profusão de informações e objetos
e ações em forma de cenário e ação cênica, que o palco italiano não permite que
o espectador tenha a possibilidade da fruição desse subliminar texto, que é o
espaço. Mas acredito que foi necessário; gostando ou não, saímos tocados por
Gabriela, Nelson e o poder de experienciar um espetáculo performativo desta
intensidade. Palmas ao Palco Giratório que proporciona este tipo de
experiência.
TATIANA HOREVICHT E JULIANA CAPILÉ
CIA PESSOAL DE TEATRO