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Tive o
prazer de ver e ouvir artistas/cantores, músicos do mais alto nível, em
celebração espontânea ao aniversário de Cuiabá. A musa canora Vera Capilé
colocou sua voz reboando na desprezada e triste cidade velha, lá na Praça da
Mandioca, em homenagem a Cuiabá, cancioneira e seresteira. Lá estava Mestre
Bolinha, Júlio Coutinho e Márcia, Pio Toledo e Hellen, Guapo, e tantos outros.
A fala poética e dramática na expressão do grande artista Neneto homenageando a
Cuiabanália. A força cinematográfica de Glorinha Albues, trazendo às telas Liu
Arruda, nosso ícone, junto com Glauber Rocha. Gomes está de parabéns por essa
iniciativa, como grande protagonista da nossa arte na gestão do som da melhor
qualidade, ampliando acesso para garantir música. Ele resolveu intervir sobre a
grande “mancada” da Secretaria Municipal de Cultura, infelizmente alheia ao
cotidiano das nossas raízes culturais, quando impôs uma exclusão dos nossos
talentos musicais—imposição unilateral de megaapresentação dentro de uma só
corrente musical, com participação também de grupos vindos de fora. Quanto
custou? Nunca vi a Praça da Mandioca tão lotada de gente festando, dançando,
cantando, e com tantos artistas de alto nível que temos em nossa terra. É
preciso colocar esses eventos em mãos de quem conhece minimamente nossa
encantadora diversidade cultural. Já bastava a suspensão do desfile de
Carnaval, transferindo o desfile de escolas e blocos para agora, em função da
negociação com a escola de samba carioca Mangueira. Estes tipos de eventos transformaram-se
em objetos rigorosamente mercadológicos, onde potencialmente imiscuem-se em
águas turvas o financiamento público com os interesses privados. Ouvimos também
lá o belo samba-enredo do compositor e carnavalesco Davi. Transferência
insensata, que esvaziou de fato a marca da tradição carnavalesca em nossa
cidade. Não se tem idéia do que seja um marco cultural, muito menos os
acalantos que habitam o imaginário social de nossa cidade e de nossa gente.
Entendo que o retrocesso vai sendo ampliado desse jeito, com a tal visão
empresarial que pode dar conta do mercado, não dos interesses coletivos. O que
assistimos é “um tapa na cara” dos protagonistas e atores culturais da nossa
terra. Ainda bem que os artistas resistem e enfrentam este cenário desfavorável,
que amplia uma crise identitária em razão de áulicos que estão lixando-se para
a nossa historia cultural, especialmente no acúmulo da qualidade e da
participação social. Cultura, mexe com subjetividade, não é como produzir
construções, porcas e parafusos. Precisa muito mais. É uma pena que isso possa
revelar compadrio, interesses menores e excludentes. Quem sabe, por exemplo,
que dentro da qualificada diversidade das nossas artes existe uma peça teatral
de dramaturga da terra, “Cidade dos Outros”? Uma grandeza na sua complexidade,
que expõe as vísceras dos dilemas e tragédias humanas de Cuiabá e todas as
cidades do mundo. A peça tem tantas instâncias de interpretação, centradas no
inconsciente coletivo e seus cenários emblemáticos em nossos ciclos de vida.
Fala de hoje, do que estamos tratando, da estrutura comportamental e divergente
dos nossos padrões de relações, incorporando em uma só peça e roteiro tantas
histórias e verdades, em um passeio de miscigenação entre a realidade e a
ficção. Um quebra-cabeças, que deveria ser de desdobramento até para uma nova
linguagem teatral, podendo dispensar palavras, sobrepondo e valorizando a
concretude, a superposição de revelações, sons e movimentos. Expressão do
teatro contemporâneo, que deveria estar percorrendo por vários lugares nestes
tempos, como a dizer que a evolução/involução, o crescimento/fenescimento nos
padrões da estrutura e funcionamento da nossa cidade, agem contra as pessoas
que nela vivem. É esta a dinâmica da cultura que buscamos nas artes: romper com
a mesmice, com nossa abominável submissão e apatia, e mesmo com o desprezo e a
ignorância do outro, enquanto sujeito da construção da decência, alegria e
felicidade. Qual outro? Aqui, pode ser o povo excluído, o Estado, o poder
público em sua incúria política, fechando os olhos à luta pela sobrevivência e
dignidade. Imaginem a distância que estamos em ver a descentralização efetiva
da cultura como corolário das políticas públicas. Ir ao povo onde ele está, nas
suas singularidades. Assim, Cuiabá é a expressão típica da “Cidade dos Outros”,
que tive o prazer de assistir mais uma vez lá no SESC-ARSENAL. É impressionante
o desempenho das duas artistas (Juliana Capilé e Tatiana Horevitch), que nas
suas interpretações podem até dispensar a escrita, em expressões corporais
falando dos nossos dilemas, da ética perdida, e dos nossos lugares de vida.
Pois é, Cuiabá é nosso lugar de vida. É possível lutar contra a sua
desfiguração estética e social. Saudações aos que amam e lutam por esta terra."
WALDIR
BERTULIO