quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A SANTIDADE DA FICÇÃO

*Temos aqui a honra de publicar em português o belíssimo texto de Eugenio Barba, escrito para o caderno do novo espetáculo do Odin Teatret - "The Tree" (2016). 
Nesse texto, Barba cita um pouco de sua vivência em  Mato Grosso, juntamente com Julia Varley, pelo Encontros Possíveis, realizado pela Cia. Pessoal de Teatro. 
Em 2015 o Encontros Possíveis aconteceu em parceria com o Festival de Teatro da Amazônia Mato-grossense, em Alta Floresta, norte do Estado. 
Que os Encontros continuem Possíveis





Eugenio Barba


A SANTIDADE DA FICÇÃO
À Ariane e ao povo do Soleil


            Quando batemos à porta do teatro, recebemos uma promessa: siga-me, eu sou o Caminho. Eu te levarei onde queira sua imaginação, seu daimon, sua necessidade mais profunda: fama, dinheiro, fuga de si mesmo ou em direção a si mesmo, luta contra injustiça, um encontro com o outro ou a busca do Novo, da Beleza ou de Deus. Eu sou o caminho da recusa, da revolta e da solidão. Sou ciência, esoterismo e grito de guerra. Sou Meca, Bodhgaya, Jerusalém e Benares, o lugar que faz de você um peregrino. Você não pode me seguir sem que lhe ocorra uma mudança interna.
Essa promessa é uma ficção e uma realidade cotidiana.
Uma Estrangeira se instalou no meu cérebro, disse Proust um dia. Tratava-se de um pensamento de morte. Para alguns, esse pensamento redobra a pressa, a intensidade do fazer, a necessidade do excesso.
Mesmo se sempre encontramos uma solução para as vicissitudes da vida, subsistem questões contendo um segredo. Continuamos formulando-as sem nos darmos conta, e de maneiras diferentes. Aparecem fantasmas, fantasias, imagens de homens e mulheres, livros, vaidades, desejos e ambições. São ficção e realidade, irrefutáveis como um axioma. No dia em que conseguirmos desvendar o segredo de nossas questões, a terra se abrirá e a Estrangeira estará lá para nos acolher.

Fingir a morte
Perfumes frescos como carne de criança. Esse verso atravessa minha mente enquanto observo a silhueta humana sem roupas. Uma meia-lua ilumina o espaço delimitado pelos espectadores que entreveem esse corpo reconhecível e incomum, inteiramente coberto por uma sensual cor ocre. Outras silhuetas emergem da escuridão, cobertas pela mesma cor, que lhes realça e oculta à nudez. Sua vulnerabilidade se reforça ao fragor de uma motocicleta cavalgada por um adolescente desnudo e ocre. Liga e desliga o motor, e o farol potente destaca e dissolve um grupo de jovens ocres e nus, em pé e agachados como gado esperando.
A motocicleta é um mastim brincalhão. Gira ao redor deles, acelera e freia, arranca e silencia, cuspindo fumaça que irrita a garganta e os olhos. Uma jovem atriz se desloca lentamente, desenrola uma tela branca, a estica sobre sua cabeça e um jaguar se move cauteloso nessa tela exígua, trazido à vida por um projetor escondido. Um adolescente se estende no solo, levanta uma velha maquina de escrever, dobra os joelhos e um companheiro se senta sobre eles e bate as teclas. Um jovem corre atrás de uma garota, a agarra e a joga ao solo, se deita sobre ela lutando e rolando. Sinto o peso e a contração dos corpos atracados e também a dor da carne lacerada pelas pedras. A floresta ao redor respira, pensa e murmura.
“Festival de Teatro de Alta Floresta, Mato Grosso, dezembro de 2015. Boé do grupo de teatro Faces de Primavera do Leste. Dramaturgia e direção coletiva dos atores. Um índio morre e a tribo se reúne para o ritual de despedida. O espetáculo é um estudo antropológico da cerimonia funerária dos Boé-Bororo, conhecidos por sua visceralidade e relação com a vida após a morte“. Assim está escrito no programa*
Aqui, no Mato Grosso brasileiro, os proprietários de terra continuam a caça aos índios, enquanto abatem centenas de quilômetros de floresta amazônica e a transformam em lucrativos campos de soja. É o novo ouro, cresce em abundância graças aos herbicidas e fertilizantes químicos que contaminam águas e solo. Intoxicam a natureza e seus habitantes, e as estatísticas mostram que a economia do Mato Grosso está crescendo.
Quanto vale um ser humano? Vale mais quando é velho, jovem, vivo ou morto? E um ator, quanto vale? Vale menos hoje do que ontem? O que decide o valor do ator? Méritos objetivos? Critérios estéticos? Técnica? As categorias metafóricas da Über-marionete ou do ator santo? A economia? A insensatez da história, da qual somos todos reféns?
O teatro onde acontece o festival é um galpão de madeira. Atrás dele se estende um terreno selvagem até o limite da floresta. Foi aí que o grupo Faces recriou a cerimonia que acompanha a morte de um Bororó. Representou também a morte de toda a tribo?
Um pequeno jardim, adornado com pneus pintados de cores vivas e meio enterrados na terra é o foyer do teatro. Alguns bancos, cadeiras e uma mesa acolhem os espectadores. O edifício humilde se encontra na periferia da pequena cidade, numa rua asfaltada, que depois de poucos quilômetros se transforma em uma vereda e se perde na densa vegetação. Daqui surgem caminhões carregados de troncos gigantescos derrubados ilegalmente.
Alta Floresta é uma cidadezinha com cerca de 50.000 habitantes, cuja fundação data de 1978, sob ordens do governo militar. É situada em plena Amazônia, a cerca de 800 km de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, e 75 minutos de voo, no único avião diário. A floresta deveria ser domesticada e transformada em pasto, campo de soja e de madeira para construção. Em 1989, um casal de professores reuniu alguns alunos e, juntos, fundaram o Teatro Experimental. Hoje, os dois mestres não guiam mais o grupo, mas os jovens, agora adultos, continuam como um coletivo teatral. Construíram com as próprias mãos um teatro com piso de terra batida e paredes de barro e pranchas de madeira, por onde se infiltra a luz. Na estação de chuvas o barulho da água sobre o teto acompanha suas vozes. Poucos refletores nas paredes e uma tribuna primitiva e incômoda: assisto aos espetáculos de um festival que reúne grupos teatrais da região.
O que eu faria se vivesse aqui? Minha pergunta permanece sem resposta. O teatro, por desprovido que seja, é agir, uma alternativa aos discursos da razão. É ficção, mas as consequências são reais. Invisíveis, mas ativas no universo interior de quem faz teatro e de quem o vê, na própria cidade e também em terras longínquas. Assim acredito. Meio século com o Odin Teatret sustenta minha crença.

O teatro: o lugar da morte fingida
O ator é um especialista em inventar as condições de uma instabilidade criativa entre ser em parte si mesmo e, em parte, um fantasma. O fantasma é a aparição daquela parte de si que vive em exílio em seu mundo interior. Mas o ator domina também a técnica de morrer sem qualquer ênfase mística, e assumir uma vida que vem de longe: a personagem. “O poeta é um fingidor”, escreve Pessoa. “Finge tão completamente que chega a fingir a dor que deveras sente”. O ator é um poeta que finge morrer nesse laboratório de ilusões no qual os espectadores, na tépida caixa preta onde estão encerrados por vontade própria, fazem viagens imaginárias aos confins da vida. É a tragédia que dá nobreza ao teatro, o destino fatal de heróis, de inocentes e de infames: Hamlet, Antígona, Iago.
“Morri tantas vezes, mas nunca assim”, está escrito sobre a tumba de um ator etrusco, em Tarquinia. O teatro é o lugar da morte fingida, ecoa Michel Leiris em Fourbis. Quando criança, ele esperava ansioso a morte de Romeu e Julieta ou de Cyrano: saber morrer é a prova de fogo para um grande ator. Leiris conclui tristemente: “Hoje, são poucos os atores que sabem representar os grandes assassinatos elisabetanos, sem parecerem ridículos”. Para ele, a perda da arte de morrer é a prova de que o teatro não cumpre mais seu propósito: fazer uma ponte de nosso mundo a outro.
O teatro se torna uma ficção apressada de questões dramáticas de vida e morte. Além disso, às vezes, essa ficção intensifica a vida no teatro com sua dança/luta entre a urgência de sucesso e a memória que quer evocar, entre o desejo de aceitação e a vocação de sacudir a interioridade de cada espectador. Para alguns diretores e atores, a necessidade de usufruir dessa ficção para infectar as certezas do espectador é tão incontrolável quanto a fome ou o pensamento da Estrangeira.
“Quem viu a Beleza está condenado à morte.” Como uma pergunta que contém apenas mistério, este verso de Novalis me acompanhou na criação de cada espetáculo do Odin Teatret.
Ornitofilene (1965). Os amigos dos pássaros. “Ai do pai que trai, porque a filha morrerá por ele”, sussurra a filha ao pai, um guerrilheiro disposto a fazer as pazes com seus carrascos nazistas. A filha acaricia os cabelos do genitor, cospe em sua face, sobe numa mesa, se aproxima de uma corda que pende do teto, suas mãos deslizam até o laço, ela o coloca como uma coroa em sua cabeça e o move para baixo até o pescoço. Apenas um passo e ela oscila no vazio: a primeira morte do Odin Teatret.
Kaspariana (1967). A história de Kaspar Hauser e seu longo aprendizado para uma morte prematura. Um desconhecido se aproxima de Kaspar, uma faca nas mãos, levanta a arma, golpeia, a escuridão abraça os espectadores. Um coro canta um salmo: “Bela é a Terra, bela é a peregrinação da alma ao Céu através dos impérios poderosos da Terra”.
Ferai (1969). O título é um híbrido geográfico: as ilhas Faro, no Mar do Norte, e a cidade de Feres, onde nasceu Alcesti, que, no mito grego, sacrificou sua vida para salvar seu marido, o rei. No piso negro reluz o cetro: uma faca cujo punho é uma flauta. Quando o rei a toca, seus súditos dançam atrás dele como ratos. Alcesti, a rainha, se ajoelha, aproxima o peito da lâmina, desliza sobre ela e pressiona o ventre contra ela com um lamento de sofrimento e gozo. Seu corpo tremula como se agitado por dois braços invisíveis, o chapéu cai, o mar de trigo de seus longos cabelos loiros resplandece, a imponente túnica negra se rasga e emerge o corpo delgado da atriz vestida de branco. Sorri e geme: “Dor e miséria, miséria e dor, uma nuvem de pó aos pés da rainha. Como germina a semente? Morre, e quando morre, sabe que vive”.
A casa do pai (1972). O fuzilamento falso de Dostoiévski ordenado pelo Czar e a frase do Príncipe Mishkin, o Idiota, protagonista do romance do autor russo: “Às vezes acontece que, inconscientemente, uma infinidade de coisas passa pela mente, até mesmo no momento em que se é conduzido à guilhotina”. Ao final do espetáculo entregávamos uma carta a cada espectador, na qual lhes pedíamos que escrevessem suas reações. “Queria ter a coragem de deixar meu rosto viver como vocês o fazem. Sofrem ou são felizes quando atuam?” “Eu também tenho fragmentos dispersos de uma beleza violenta que me atormenta.” “O mais belo e doloroso grito de amor que jamais ouvi. Odin me faz pensar em duas palavras em grego, minha língua materna: oduné = dor, edoné = prazer”. “O suor, as rugas e a respiração mínima de vocês comunica algo distante e dividido”. “Quando desapareceram atrás da porta, voando descalços, de seus lábios caíam minhas lágrimas para recordar a tempestade e o depois (sic)”. ”Às vezes suas cenas são asquerosas, tão violentas que me dá vergonha não fechar os olhos, enquanto vocês nos envolvem com seus sons e movimentos provocadores, tão próximos a nós que se sente a respiração em nossa nuca. Revivi algo que havia esquecido quando, ainda criança, acontecia algo que era questão de vida ou morte”.
Vem! E o dia será nosso (1976). Era a mensagem que o general Americano George Armstrong Custer havia enviado a um de seus oficiais para encorajá-lo a participar do que ele imaginava ser um massacre fácil de indígenas. Era o ano de 1876, em Little Bighorn. Foi ele que encontrou seu destino: a morte. O espetáculo evocava a aniquilação da cultura Sioux Oglala, mas também “a obscuridade que é um caminho e a luz que é um lugar”. Era essa a realidade do guerreiro-xamã Tashunko Witko, que morre ao ser atravessado pela baioneta de um soldado americano. Era chamado Crazy Horse, cavalo louco, porque havia experimentado a existência de duas realidades: aquela que você divide com seus semelhantes e aquela que pertence somente a você, onde os cavalos dançam como loucos.
Cinzas de Brecht (1980). Com ternura e engenhosidade alinhávamos os mortos que acompanharam Bertolt Brecht em sua vida e em seu exílio. Um judeu corre sem encontrar uma via de saída entre os espectadores, enquanto a fumaça apetitosa do refogado de cebola de uma cozinheira inunda a sala. O amigo Walter Benjamin se enforca enquanto foge de Hitler e Brecht recorda: “Cansar o adversário era a tática que você gostava quando se sentava à mesa de xadrez, à sombra do pé de pera. O inimigo que te expulsou de teus livros não se deixa cansar por gente como nós”. Brecht aperta entre os braços sua amada colaboradora Margarete Steffin: “Desde que você morreu, pequena mestra, eu vago sem olhar ao redor, sem paz, atônito num mundo cinza: meu general caiu, meu soldado caiu”. A cena principal do espetáculo é a vitória de Katrine, a filha muda da Mãe Coragem, que, com seus gritos desarticulados, desperta a cidade de Halle e a salva de um ataque inimigo. Mas é tomada prisioneira, violentada e fuzilada. Com suas mãos, na linguagem de surdos-mudos, sussurra: “Quando você me faz feliz, penso com frequência: agora poderia morrer. Assim eu seria feliz até o fim. Quando você ficar velho e pensar em mim, eu serei como hoje. E você terá uma namorada sempre jovem”. Uma poesia de amor de Brecht para Ruth Berlau.
O Evangelho de Oxyrhincus (1985). “O morto” era o título da novela de Borges sobre a qual havíamos trabalhado por algumas semanas para um esboço de espetáculo. É um procedimento que seguimos com frequência no Odin Teatret para nos prepararmos para o “verdadeiro espetáculo”: um período de ensaios sobre uma outra história ou texto. No Evangelho de Oxyrhincus apareciam outros protagonistas trágicos: Joana D’Arc na fogueira, Antígona sepultada viva junto à sua revolta e a morte-iniciação simbólica de um carrasco. Se queres viver, deves matar: estamos na comarca do falso messias Sabbathai Zevi – Stalin – que reina com gestos de uma mão-prótese e palavras com som metálico.
Talabot (1988). O nome de um barco mercantil norueguês e a odisséia de uma antropóloga dinamarquesa obstinada em seguir seu caminho: a morte do pai, a morte do mestre que a guiou no mundo acadêmico, a morte de uma babá mapuche assassinada por anônimos na Argentina, a interminável litania de vítimas e mártires que acompanham a biografia da protagonista. Havíamos nos preparado para esse espetáculo ensaiando à noite, durante um mês, Yvonne - princesa de Borgonha de Witold Gombrowicz, morta por um espinho de peixe na garganta.
Kaosmos (1992). Caos e cosmos, desordem e criação: a decomposição de um país, a Iugoslávia. Os excessos da morte a serviço de paixões patrióticas que trucidam para dar espaço a uma vida imprevisível.
Mythos (1998). O assassinato de uma canção, A Internacional. E com ela o extermínio da esperança e da memória de milhões de vitimas e cúmplices – involuntários ou conscientes – nos países onde o comunismo era a lei e nos países onde o comunismo era a miragem de uma nova dignidade. Os atores rezavam diante de um mar de tumbas: “Deve haver outras palavras mais nobres para aqueles que nobremente deram a vida pela causa mais justa do mundo, unida ao crime mais infame do homem”.
O sonho de Andersen (2004). A vida é uma fábula cheia de tarefas impossíveis: aprender a língua das serpentes e combater um exército de formigas. A fábula é o universo da anarquia pura, onde quem se esforça em seguir uma via razoável perde, e quem, ao contrário, se comporta de maneira insensata, se casa ao final com uma princesa. A vida é uma fábula povoada de monstros, de mulheres e homens que são metade animais, de mortos que falam. Não é o mundo dos mitos, é o mundo da confusão. É um mundo que as crianças amam, mas que não ama as crianças. Ali elas morrem em abundância.
A vida crônica (2011). Os mortos, como uma fogueira, iluminam a memória de seus entes queridos. Esposas e filhos buscam o caminho na luz das chamas, enquanto os transeuntes se afastam incomodados pelas cinzas que o vento dispersa. As viúvas de um mujahedin tchetcheno e de um terrorista basco trocam lembranças, enquanto um adolescente com uma pistola nas mãos guia um jovem violinista cego para fora, através da porta trancada que protege os espectadores.
A árvore (2016). A história de uma árvore imensa e morta: a árvore da História, a árvore das nostalgias, a árvore do esquecimento. A lua desliza sobre as montanhas e ilumina crianças-soldados que sonham, monges que rezam, mães que maldizem o céu e senhores da guerra angustiados pela sorte de seus filhos.
E também nos outros espetáculos: o suicídio de Eik, o jovem poeta dinamarquês, em Itsi Bitsi; a trilogia de Mr. Peanut – O castelo de Holstebro, As borboletas de Doña Musica, Ave Maria – a Morte no papel de um sedutor, de uma avó bondosa e de Durga, artífice de metamorfose; Judith, uma heroína bíblica decepa a cabeça de seu amante, adversário de sua fé; Orô de Otelo, Cerimônia para Otelo, onde o assassinato de Desdemona na ficção é seguido do assassinato de Otelo na realidade. Augusto Omolú, o ator protagonista, foi arrebatado pela morte sem haver tido tempo de confrontá-la. Pereceu esfaqueado na sua casa em Salvador, pouco antes de regressar ao nosso teatro e retomar esse espetáculo.
“Vou procurar um Grande Talvez” parecem ter sido as últimas palavras de Rabelais. Mas não foi a certeza aquilo que procurei com meus companheiros do Odin Teatret durante esses 50+2 anos?

Morrer fingindo
Sempre pensei que um espetáculo é ritmo vivente: poesia e música. Em Primeira lição de um ator, o jovem poeta indonésio Warih Wisatsana escreve ”Assim esse palco se torna uma estação / onde dois amantes quebram sua promessa: / um se suicida / o outro finge que morre”. Isso pode acontecer na realidade poética e também na vida diária. Mas no palco? No ritmo vivente da ficção, o ator, com ações reais, revela a realidade do invisível e assim se revela.
Antes ainda de completar dezoito anos, Torgeir Wethal havia fundado o Odin Teatret comigo em Oslo, no distante ano de 1964. Morreu de câncer em junho de 2010. Durante quarenta e seis anos experimentamos juntos uma forma particular de colaboração, parca em palavras e consolidada por uma paciência recíproca.
Torgeir deu seus primeiros passos como ator na escola secundária. Erik Trummler, um alemão refugiado do nazismo na Noruega, lhe ensinou que o poder da ficção vai além do palco cênico. Os laços com Trummler duraram muitos anos, mesmo quando Torgeir deixou seu país e família para se mudar, com o Odin Teatret, para a Dinamarca. Uma outra experiência foi decisiva para ele: uma improvisação de uma hora com uma atriz sueca. Foi em 1966, em Holstebro, durante o primeiro curso de Grotowski no exterior. Aos trinta participantes foi pedido que abaixassem a cabeça e cobrissem os olhos com as mãos. Ouviram Grotowski sussurrar algo, depois só estalidos e ruídos tênues de passos. Depois de uma hora receberam a ordem de levantar o rosto e abrir os olhos. Torgeir e a atriz, em pé, estavam iluminados. Grotowski, sentado, estava idêntico a si mesmo, inescrutável atrás de seus perenes óculos de sol. Desde então, a reverberação dessa improvisação se encontra em muitos personagens na carreira de Torgeir.
Eu estava viajando quando, em 2009, os médicos diagnosticaram um tumor maligno no pulmão de Torgeir, que estava se espalhando por todo o corpo. Fui diretamente do aeroporto para sua casa. Deveria se concentrar totalmente na quimioterapia, lhe expliquei. Por isso eu havia decidido reestruturar os quatro espetáculos que tínhamos em repertório, substituindo-o por um outro ator. Nenhum comentário nem objeção. No dia seguinte, e por diversas semanas, Torgeir guiou por horas e horas o companheiro que devia substituí-lo, morrendo simbolicamente para o espetáculo, para que este continuasse vivendo. Eu o observava enquanto indicava o fio de ação a se desenvolver. Devia ser uma sensação estranha sugerir de fora o que sempre havia feito de dentro. Constatava algo dificílimo de experimentar: a materialidade da própria ausência. Indicava os estratagemas técnicos: o impulso de um companheiro que dava início à cadeia de suas reações; onde acomodar um objeto que deveria mover sem ser notado; o momento exato de produzir um som ou acender uma luz.
Torgeir nunca falou de sua morte iminente, como se fingisse não vê-la. Por semanas e meses soube traduzir essa ficção em ações sob nossos olhos. Ainda que suas forças diminuíssem, permaneceu atento e desprendido, com sua habitual atitude lacônica e relutante, que me exasperava. Sua imperturbabilidade era assombrosa. É essa a nobreza do ator? Pode-se chamar de coragem? Ou é a manifestação de um reflexo profissional adquirido durante uma vida inteira na arte, que agora é ars moriendi?
Ao mesmo tempo, Torgeir continuava a participar dos ensaios do nosso novo espetáculo, cujo título, A vida crônica, havia sido decidido dois anos antes de sua doença. De manhã ia ao hospital para controles e tratamentos. Dessa forma, eu e os atores nos encontramos trabalhando em dois espetáculos: de manhã desenvolvíamos uma versão sem Torgeir, à tarde ensaiávamos com ele a velha estrutura, com seu personagem. Não era fácil para os atores lembrarem as duas variações; as mesclavam continuamente entre esquecimentos, equívocos, indecisões e erros. Quando o câncer chegou ao cérebro, Torgeir não só esquecia o que devia fazer ou dizer durante os ensaios, mas muitas vezes não distinguia mais direita e esquerda. Os companheiros lhe sugeriam em que direção caminhar e lhe explicavam que devia tirar uma chave do bolso e entregá-la de determinada maneira a um deles. Essa confusão mental valia para cada um dos atores, que ensaiavam um espetáculo com vida dupla. Surgiam continuamente situações grotescas que, contra nossa vontade, desencadeavam uma hilaridade geral. Torgeir nos olhava desconcertado, como se de repente houvéssemos nos despojado da seriedade que sempre havia caracterizado nossos ensaios.
Todos nós nos comportávamos como se não soubéssemos que terminaríamos o espetáculo sem ele. Ele também se portava como se não soubesse, a tal ponto que, muitas vezes, também acreditávamos. Torgeir morreu fingindo. Logrou não se deixar dominar pela Estrangeira. Torgeir era expert em executar ações reais criadas por seu corpo-mente. Limitou-se a permanecer ator e a se concentrar naquele modo de trabalhar que não depende dos ponteiros do relógio, mas da intensidade em que o tempo é vivido. Soube usar suas últimas energias para permanecer um corpo-em-vida, aproveitando os intervalos nos quais a Estrangeira se ausentava de sua mente.
Um grupo teatral permanece vivo desde que não se adapte totalmente ao próprio tempo. Imagino que muitos de nós, do Odin, esperamos seguir seu exemplo, quando estivermos conscientes do fim iminente. Não exigimos muito, somente continuar até o fim, a modelar nossa vida na ficção absoluta do teatro. Ajudamos Torgeir nisso.

O rigor mortis que leva além
No teatro nos deparamos frequentemente com a pretensão de compreender o motivo e o propósito de um pensamento, um ato, uma intenção do ator. Mas uma ação vocal ou uma ação física começam sem se perguntar por que se iniciam, dizia uma de minhas atrizes, que havia escolhido o Odin Teatret, porque aqui o diretor jamais perguntava aos atores os motivos de suas ações. O inicio é o contrário da Morte, o inicio é. Era essa a afirmação de Vida que ela procurava e na qual o diretor, sem saber, acreditava.
Torgeir renunciou a fazer um novo exame na escola estatal de teatro de Oslo para seguir um estrangeiro anônimo que havia fundado um grupo teatral sem um espaço próprio, e que obrigava seus atores inexperientes a horas de exercícios físicos e vocais. Em 1964, na Noruega, uma preparação teatral como essa contradizia toda forma de sensatez.
Torgeir e outros três companheiros, entre eles Else Marie Laukvik, que trabalha ainda hoje no Odin Teatret, haviam descoberto uma razão pessoal para imergir na duração extenuante dos exercícios. Faziam e refaziam essas formas sem significado, porta-jóias vazios, miragens de pura aparência. Eles as repetiam com intransigência e empenho. A precisão não era fácil quando sobrevinha o cansaço. Tornava-se difícil respeitar o desenho exato do exercício, sem a mínima alteração ou desvio. Toda a vontade deles estava concentrada em repropor aquilo que haviam aprendido como uma fórmula dinâmica vazia, a ser preenchida com a própria motivação.
Repetir corresponde a verificar novamente a experiência física original. A força transformativa oculta do exercício – ainda desconhecida para quem o executa – não está na fidelidade ao modelo ou na esperança de desenvolvimento artístico, mas no copiar com orgulho até atingir uma dimensão que vai além da forma física.
Um exercício é um modo de pensar com o corpo inteiro. Permite absorver e metabolizar a sucessão de elementos múltiplos e minúsculos junto à sua refinada orquestração simultânea. Um exercício é uma estrutura vibrante de tensões orgânicas, uma progressão de notas de música interior, uma declaração rítmica de fé. O ator abraça o ar e, no entanto, executa uma ação real. Deve saber repetir o modelo e reproduzi-lo, idêntico e de outro modo, sem desperdiçar seu poder, cavalgando sua forma até o momento da unicidade. Quando a repetição deixa de ser repetição? O que se torna a repetição quando não é mais repetição?
Este modo de proceder parece um aprendizado similar ao rigor mortis. Naquele tempo, muitos consideravam o treinamento do Odin uma expressão de fanatismo sectário que sufocava a individualidade.
No entanto, desde aqueles primeiros dias, e apesar de minha inexperiência, acreditei nos exercícios e, graças aos meus atores, os vivi como o caminho que leva mais além. Os exercícios são um jugo voluntário, no sentido de união para reencontrar-se indivíduo: não dividido. A aparência de jugo é devida ao processo técnico de sobreposição de uma lâmina brilhante – a forma muda do exercício que se fecha em si mesma. Essa forma permanece muda se a repetição não for praticada por meses e anos, a fim de encontrar aquele ser que move o nosso corpo/espírito, seguindo o ritmo-respiração de uma misteriosa motivação.
No teatro, os segredos da repetição fazem parte de uma doutrina interior impossível de comunicar. Agem simultaneamente a uma doutrina exterior exposta em palavras e intenções vagas ou peremptórias. Quem sabe copiar, saberá fazer. Esse é o mistério evidente do agir persuasivo do ator, que é um desafio ao olhar e à racionalidade do espectador.
Teria Torgeir dominado a morte na última parte de sua vida, como um bom ator sabe dominar seu papel? É exagerado pensar na natureza contraditória do teatro como uma luta viva contra a Morte, na qual o ator desnuda sua nobreza?
Depois de 50+2 anos de vida, para todos nós do Odin Teatret, aumenta a cada dia o preço por não haver morrido antes.

Remar fingindo orientar-se
No teatro não somos definidos por nossos limites naturais, mas pelo fato de sabermos eliminá-los. A disciplina é sinônimo de necessidade pessoal, conhecimento técnico e preparação contra adversidades. A disciplina varia porque variam os caminhos que percorremos. Aquilo que não muda é a consciência da natureza do caminho em direção a um único objetivo: a conjunção dos contrários. A complementariedade se manifesta através de um enxame de mínimas reações e detalhes reciprocamente contrastantes, que são preciosos pelo tempo, repetição, elaboração e obstinação que exigiram.
O orgulho e a raiva nos obrigam a perseverar: não queremos nos curvar nem nos tornarmos razoáveis demais. É necessário permanecer flutuando, deslizando sobre a superfície, consciente dos rochedos que afloram de baixo. Continue a remar, fingindo que é seu modo de se orientar: essa é uma indicação que eu daria a quem quer fazer teatro. São os remos que contam, como as asas para os albatrozes. É você quem constrói os remos. O esforço além de suas capacidades e sua necessidade de dissidência são as condições para avançar. Mover-se na superfície não é superficialidade, é uma ação que nos liberta do lugar que, na arte e na vida, o destino e a História nos reservaram, e no qual nos aprisionam. A superfície transforma as distâncias em vias de comunicação. As múltiplas atividades do Odin Teatret pertencem à superfície, que é compromisso e herança para herdeiros desconhecidos. O primeiro mandamento para quem navega não é escrutinar os abismos do mar e seus segredos, mas sim manter a quilha longe do fundo. Encalhar é sinal da incapacidade de confrontar-se com a realidade e de burlar suas constrições.
É o olhar do espectador que decide. Não os olhos, mas o cérebro, que é uma mescla de passado animal e biografia individual.

A santidade da ficção
É o pensamento sobre a Estrangeira que me protege da vida. Mais que a consciência da fugacidade, do absurdo e das injustiças da condição humana, esse pensamento é para mim fonte de conhecimento e experiência. É a culminação de um aprendizado cuja origem foi um instante que dura toda a vida. Estudei o rosto de meu pai por uma noite inteira, durante sua agonia, quando eu, ainda criança, estava à sua cabeceira em meio a adultos que sussurravam atarefados. A cortina se rasgou e vivi o mistério do corpo-em-vida. E o revivo na culminação de Eros, tentando invocá-lo junto aos meus atores no espaço vulnerável da ficção teatral.
A Estrangeira – o pensamento sobre a morte – é o Céu no qual se afundam as raízes do Odin Teatret.
O diálogo com a Estrangeira é a bússola que me orienta no País da Velocidade, esta pátria e este tempo que não coincidem com a nação e a época que atravesso. O viajar contínuo – em meu mundo interior, junto a outros, em meio às mesmas dificuldades inevitáveis e vias “jovens” – transfigura a monotonia e a fadiga do teatro. O diálogo com a Estrangeira me pressiona a estreitar laços antes, durante e depois do espetáculo: entre atores e espectadores, passado e presente, cinismo e esperança, intenção e ato, História e biografia, entre o velho que sou e os netos ainda não nascidos. Cada uma de minhas decisões ponderadas ou reações impetuosas se revolve nesse Céu mudo. É um dialogo cuja língua é incompreensível à razão, possível apenas através de uma técnica pessoal que é objetivamente eficaz para atores e espectadores.
Na ficção do teatro, a santidade não consiste em fazer coisas extraordinárias, mas na obstinação em tornar extraordinárias coisas ordinárias. No Teatro, a santidade é uma planta rara que tem as raízes no artifício (ars facere) e no sacrifício (sacrum facere). O artifício está ligado à capacidade pessoal de criar uma ficção que seja mais intensa que a vida, através do saber fazer físico e mental do ator. Sacrifício não significa privação ou dedicação sofrida. É o cumprimento de uma ação que celebra o sagrado – o valor que dá um sentido a nós mesmos e ao que realizamos em nosso ofício.
Cada forma de vida assume duas manifestações: uma natural, na realidade, e uma fictícia, na arte. Estas duas manifestações são irrefutáveis para nossa percepção. Ambas atuam sobre nossa fisiologia, sensibilidade e memória, sobre cicatrizes de nosso passado e sobre o estado de ânimo do momento, sobre os valores de nossa consciência e sobre as faculdades de juízo.
Experimentamos a ficção da arte através de um filtro. Podem ser os ritmos, as entonações e tensões de seres humanos sobre um palco, o movimento acidental numa rua que inspira palavras sobre o papel, ou a sábia disposição de maçãs numa tela de Cézanne. Há sempre a necessidade de uma lasca de vida que provoque nosso olhar e coloque em movimento uma mão invisível que afasta o véu diante de nossos olhos.
O teatro, essa obra de arte vivente, pode se tornar uma aparição graças à sua duração fugaz. Cada um de nós teve essa experiência pelo menos uma vez. Cada um de nós viveu a santidade da ficção no momento em que a ficção não estava mais ali. Nosso olhar havia escorregado para outro lugar.
“Para mim o ato mais importante da tragédia é o sexto” escreve Wisława Szymborska em seu poema Impressões do teatro. Depois do paradoxo desse “sexto ato” que normalmente não existe nas tragédias, segue, no segundo verso, “a ressurreição das batalhas da cena”: o óbvio levantar-se novamente de atores que fingiram a morte. Perucas e figurino são arrumados, uma faca é retirada do peito, um laço do pescoço. Uma vítima olha, beata, nos olhos do carrasco e o rebelde caminha sem rancor ao lado do tirano. Os atores esperaram pacientemente atrás das coxias sem tirar o figurino e a peruca. Agora se misturam e dão as mãos para a saudação final. Entram em fila indiana, os mortos junto com os desaparecidos sem rastros. A cortina cai definitivamente. Antes ainda de tocar o piso, uma mão se apressa em pegar uma flor no chão e uma outra recolhe uma espada abandonada em cena. Como se tudo isso fosse essencial. Niepoprawna gotowość rozpoczęcia od jutra z nowo: a incorrigível disponibilidade para recomeçar do início amanhã.
Então, diz Wisława Szymborska, aparece uma terceira mão, invisível, que cumpre seu dever e me aperta a garganta.

Tradução do italiano: Luciana Bazzo

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