terça-feira, 23 de julho de 2019

Perguntas a partir da minha segunda vida - por Eugenio Barba

Eugenio Barba. Foto: Fred Gustavos







Todos temos duas vidas, e a segunda começa quando de repente descobrimos que estamos velhos e somos tratados como tal. Nossa integridade física e nossa identidade social mudam radicalmente. A consciência do momento presente, o sorriso de um estranho, o azul luminoso do céu, a incredulidade depois de uma noite sem dor nos ossos renova o encanto da vida. Eu estou no centro do meu aqui e agora.
O mundo da minha juventude desapareceu ao meu redor. Olho em volta e uma pergunta emerge naturalmente: a aceleração do tempo, o ritmo de vida e a irrupção da tecnologia são compatíveis com meu modo de imaginar, amar e realizar meu trabalho como diretor, como especialista em tecnologia arcaica - o ser humano?
Sinto orgulho e contentamento nesta hora de celebração aqui em Náuplia, nesta Universidade do Peloponeso tão jovem e ao mesmo tempo depositária da sabedoria de uma cultura milenar que me marcou profundamente. Sinto, no entanto, algo que poderia se parecer com injustiça. Os méritos que são atribuídos a mim e pelos quais hoje recebo o título honorífico de Doutor não podem ser o resultado de apenas um indivíduo. Eu me dediquei ao teatro, isto é, a uma disciplina artística, um saber fazer incorporado e um ofício que pode realizar-se apenas através de uma estreita interação entre diferentes indivíduos com diferentes habilidades.
Tudo o que sei, tudo o que realizei em cena, e que em seguida eu traduzi em palavras no papel, devo aos meus atores, aos inúmeros colaboradores cujas ideias e capacidade em realizá-las levaram a iniciativas artísticas, e a tantas outras pessoas que muitas vezes não tinham nada a ver com teatro. Nesse momento ao meu redor há todo um povo secreto de vivos e de mortos, professores que nunca me conheceram, espectadores que apenas imaginaram os meus espetáculos, amigos que eu nunca conheci. Esperam com curiosidade ouvir as palavras que escolherei para os agradece, enquanto mais uma vez giro em torno das poucas ideias, ou estrelas polares, que sempre guiaram meus passos.
O Odin Teatret é um grupo de teatro, mas também é um laboratório teatral radicado geograficamente em Holstebro, uma cidade provinciana dinamarquesa. Constituímos um ambiente de indivíduos de várias nações e línguas que no artesanato teatral  encontraram as raízes de uma pátria profissional.
Muitos falam do Odin Teatret como de uma lenda. Como um teatro se torna uma lenda? Fazendo o que é impossível fazer na nossa sociedade, para um teatro.
Nossos 55 anos de atividade com o mesmo núcleo de atores são uma prova de que o teatro não identifica apenas com o espetáculo. O teatro pode ser o acordo tácito de individualistas que, por profundos motivos pessoais e por meio de uma disciplina artesanal compartilhada, expressam sua diversidade em uma forma de vida e trabalho. Nossa identidade como teatro é múltipla: atividades didáticas, empreendimentos artísticos e atividades colaborativas que catalisam e incluem as muitas subculturas da comunidade em que vivemos. Conseguimos infringir as duas leis do DNA do teatro: a obrigação financeira de produzir espetáculos e a impossibilidade de manter o mesmo grupo de atores por anos e anos.
Criamos cerimonias festivas junto com nossos espectadores, ”trocando” expressões culturais com eles. Faz quarenta anos que nos dedicamos ao que chamamos antropologia teatral, a busca dos princípios da pré-expressividade do ator e de sua presença cênica.
                Nosso conselheiro literário Nando Taviani afirma que o Odin Teatret é essencialmente político. A afirmação “o teatro é política com outros meios” não se refere somente ao conteúdo dos espetáculos, as histórias e eventos que podem mais ou menos incidir sobre as experiências históricas e sobre a consciência civil dos espectadores. Engloba também os modos através dos quais um teatro imagina e desenvolve sua estrutura de relações internas e as interações com o exterior. Como se renova, como decide agir, como concretiza o efeito de colocar-se de fora, movendo-se contra a corrente através de meios técnicos e artísticos e das múltiplas formas de relações que pode criar. O objetivo é evitar ser engolido pelo espírito do tempo, pelas tendências do mercado e manter a identidade de “estrangeiro” através da surpresa e do valor de iniciativas culturais no coração da comunidade fragmentada em que se vive.
                Hoje posso afirmar: o teatro é energia. Persisto com meus atores em fazer florescer espetáculos que não se deixam compreender em sua totalidade pelos espectadores porque não se dirigem ao intelecto e sim ao ser-em-vida. Energia é uma palavra indescritível, um termo de muitas faces. E, no entanto, basta tomar nos braços um recém nascido, estar ao lado de uma pessoa gravemente enferma, pousar os lábios sobre os de uma mulher ou homem, observar uma árvore, uma nuvem, uma aranha para que todo nosso ser perceba uma mensagem e reaja. É uma mensagem de energia que não se deixa verbalizar, mas sentimos dirigida a nós especificamente. Esta mensagem é um texto que deciframos com nosso organismo e suas diferentes memórias.
                Este processo cinestésico-gestual e subliminar corresponde a diferentes ritmos e naturezas de energias. Podemos imaginar como o texto de uma língua que não entendemos, mas no qual todos nós – atores e espectadores – podemos nos identificar orgânica, dinâmica e ritmicamente. Exatamente como o poeta que se identifica, com todo seu ser, em cada palavra que escreve, ou o pintor cuja pincelada sobre a tela coincide com a energia de suas necessidades e de sua linhagem. “Em cada uma de minhas pinceladas está meu sangue mesclado com o do meu pai” escreveu Cezanne em uma carta.
                Quando falo de energia, de luminosidade, de mensagens que deciframos com nosso sangue e com nossas cicatrizes interiores, que coisa eu nego, contra quem ou a quê eu me oponho? Sou ainda um mensageiro, mesmo que não saiba a quem estou servindo nem compreenda o sentido da mensagem?

Uma pergunta que surge da história do teatro
                O teatro, como o entendemos hoje, nasceu na Europa no século XVI como atividade comercial com a única finalidade de ganhar dinheiro. Havia uma necessidade própria e real somente para quem o fazia, e buscava obter lucro e ter a aprovação dos espectadores. Havia algo de mercenário. Sobre este teatro venal a literatura estendeu seus tentáculos. Os atores mercenários a tornaram acessível, acrescentando a atração do erotismo, da sedução, do terror e do escárnio. 
                Separadamente, se desenvolvia o teatro dos amadores. Visto que não dependia do critério de consenso e de remuneração dos espectadores, podia ser mais ousado. Cumpriu, involuntariamente, uma revolução Copernicana: o teatro é necessário para quem o faz, não só por razões econômicas, mas também como necessidade cultural e espiritual. Uma ilha de liberdade, para resumir em uma fórmula simples.
 Esta revolução copernicana foi absorvida no século XX pelo teatro profissional com seu comércio de espetáculos. Esse outro lado da necessidade de teatro era o sinal de seu enobrecimento. Os atores foram elevados ao nível de artistas e intelectuais. Era óbvio, no entanto, que, quando aplicada às regras da profissão, essa revolução copernicana nascida nas regiões do amadorismo estava condenada ao fracasso quando tentava sobreviver na esfera econômica do comércio de espetáculos. Dava vida a iniciativas artísticas brilhantes que, mais cedo ou mais tarde, colidiram com as leis do mercado, e depois de alguns anos se dissolveram. Encontrou nova vitalidade e recursos quando a era de doações, subsídios e patrocínio generalizado começou, muitas vezes regulada por leis estaduais. Por quanto tempo Stanislavski e seu Teatro de Arte de Moscou sobreviveriam sem subsídios?
A era dos subsídios deu origem ao esplendor do teatro do século XX, a idade de ouro da nossa arte. Hoje não é bizarro ver um ator agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura ou honrado com um diploma universitário. É o sinal tangível de uma discriminação finalmente superada. Do ponto de vista da história da cultura, é a queda de um preconceito secular. Do ponto de vista da história dos teatros, é o fim de uma era.
Este fim coincide com o momento no qual o teatro, em sua totalidade, se torna um gênero minoritário e arcaico no universo das formas espetaculares do nosso tempo.
Este fato levanta uma questão: o que acontecerá ao teatro com o possível fim dos subsídios? O que será desta potencial ilha de liberdade, de seu rigor e compromisso, de sua revolta e recusa? O que será dos "jovens" que, dotados de tecnologias sofisticadas, buscam seu caminho e, afastando-se das ilusões e ideais de seus antecessores, avançam para as regiões secas?
Os idosos têm uma vantagem sobre os jovens: viveram mais tempo. Sabem que o trabalho só pode ser realizado trabalhando. Fridtjov Nansen, pensando em sua vida, costumava dizer: o impossível é apenas o possível que leva mais tempo.


Perguntas da minha biografia profissional
Tudo que eu fiz desaparecerá com a minha morte? Só tenho meu corpo e suas constelações internas. Aí reside o que sei que sei e o que não tenho conhecimento de saber. Minha percepção como diretor, assim como a dos meus atores, tem dificuldade em encontrar palavras adequadas. Suas raízes afundam no fazer. Para salvaguardar a eficácia deste conhecimento quase mudo, uso lugares-comuns e neologismos. Mas quando essa linguagem quer explicar demais, dá a impressão de pequenez, retórica ou incompreensibilidade. Em qual urna - método ou teoria - posso transmitir o essencial do meu conhecimento-em-vida?
Por que tanta teimosia e tantos esforços? O que eu queria do meu trabalho? A experiência me tornou consciente da lacuna entre a percepção e a compreensão entre aqueles que criaram a obra e aqueles que a observam. Sei que a imaginação é a mais científica entre as faculdades humanas, já que é a única capaz de intuir as analogias universais que os místicos chamam de correspondências. Sobretudo, creio  profundamente que a essência da verdadeira ação é sats, impulso. É a energia do ator que desperta a do espectador.
Minha maior dificuldade? Inspirar no ator ações que se elevem à dignidade de enigma. Tento estabelecer coincidências entre a execução precisa dos detalhes físicos e sonoros e a pluralidade de seus significados no marco de tempo e espaço no qual as misturo: oximoro em ações e ambiguidade nas cenas. Como primeiro espectador, constato em mim o efeito de evidência e mistério que as ações e os objetos assumirão diante dos olhos do espectador.
O meu ofício é somente saber fazer, ficção, forma? Palavras, entonações, silêncios, gestos, movimentos, imobilidade são uma teia de formas perceptíveis. Mas o desenho de todas estas milhares de tensões – as ações de partitura do ator – não é a forma. É a maneira de fazer perceber sensorialmente ao espectador o que está para além da forma.
                Eu me esgotei por um teatro comprometido? As ações dos atores devem dizer, não significar. Devem bastar por si só. Cada ação vocal ou física tem sua própria potência, uma individualidade e existência em si. A energia das ações deve falar por si própria, o suficiente para resistir à agressão das ideias e dos significados. Devem deixar uma marca naquela parte intima que vive no exílio em cada espectador.
Em um de seus cadernos, o pintor Edgar Degas escreveu estas linhas: "Piron afirma que um gato é um gato. Digo o contrário. Frequentemente, uma única palavra diz demais. Uma gaze fina deve velar o retrato sem esconder as feições." Meu conhecimento como diretor é incutido nesta fórmula. Nego o que o texto afirma. Evito a tautologia através de uma ação indescritível. Mas mesmo iludindo, devo dizer algo sobre o gato em questão. Uma única palavra pode ser demais, e a ilusão pode se transformar em omissão. Preciso inventar uma gaze fina, um artifício estranho que, sem esconder as características do gato, oculta o modo como estou evocando-o. Ações e cenas veladas para tornar o espectador perspicaz.
                Pode o teatro ser o caminho para outra forma de vida? Toda forma de vida se manifesta em uma estrutura. No teatro, essa estrutura é dupla: as relações particulares que caracterizam o ambiente de trabalho e o modo de compor a dramaturgia de um espetáculo. Quando digo dramaturgia, penso em ossos dispersos à espera de um agente funerário compassivo, um julgamento universal ou um demiurgo - o ator - que os traz de volta à vida.
O que é a vida no teatro? As mil tensões vivas dos atores revelam aos sentidos e a memória dos espectadores a vida da estrutura dramatúrgica. Como diretor estou-em-vida acompanhando o ator durante o crescimento desse organismo que pulsa, o espetáculo. É a orquestração de um fluxo que tecnicamente consiste em dividir a totalidade para dar espaço à independência das cenas. Cada cena, por sua vez, se decompõe para evidenciar a independência da trama das ações e dos atores. Por fim, também essa trama desaparece para dar lugar à independência das ações de cada ator, sua energia que fala.
É o momento mais intenso da simbiose do diretor com o ator. Juntos, operamos uma sucessão de mudanças na estrutura viva: da luz à escuridão, da obviedade à ambivalência, da multidão ao deserto, da ficção à reminiscência, do humano ao inseto, da morte à vulgaridade. Misturamos habilidade técnica e imagens que perturbam. Tecemos uma teia de trivialidade, lirismo e fantasia com a profusão de detalhes – confusos, preguiçosos, bêbados, frenéticos – mas sempre reais.
O que é o teatro? É a ciência suprema do mistério da vida, acessível até para os deserdados da terra.



(Tradução: Juliana Capilé e Tatiana Horevicht)


Discurso proferido em ocasião da entrega do Doutorado Honoris Causa da Universidade do Peloponeso, Grécia, 3 de julho de 2019.

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